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O mais provável é que não.

Os cinco primeiros livros da Bíblia, chamados de Pentateuco para os cristãos e Torah para os judeus, foram atribuídos a Moisés a partir do primeiro século antes de Cristo. Esses livros são: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

Na Bíblia não existem referências de Moisés como escritor de Gênesis ou de qualquer outra parte em que não se cita explicitamente que “Moisés escreveu”.

As referências mais antigas que colocam Moisés como autor são de Fílon de Alexandria (15 a.C. a 45 d.C.) e do historiador Flávio Josefo (37-100 d.C.).

Mas a verdade é que essa questão não é apenas sobre a autoria do Pentateuco, mas sobre o que significaria ser um autor na Antiguidade.

Afinal, não se sabe quem escreveu a maior parte das obras do Antigo Oriente Médio.

Os gregos, por outro lado, nunca deixaram de dar créditos aos autores: Homero escreveu a Ilíada, Platão escreveu a República, por exemplo.

Talvez a autoria dos primeiros livros da Bíblia tenha se tornado relevante aos judeus apenas depois da influência grega.

Essa discussão ganhou força no século XIX com o surgimento da área de pesquisa chamada Crítica das Fontes ou Teoria das Fontes, em que se destacam as contribuições do alemão Julius Wellhausen (1844-1918).

Para entender o trabalho da Crítica das Fontes vamos usar como exemplo Êxodo 24:

“Depois disse a Moisés: Sobe ao SENHOR, tu e Arão, Nadabe e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel; e adorai de longe.

E só Moisés se chegará ao Senhor; mas eles não se cheguem, nem o povo suba com ele.

Veio, pois, Moisés, e contou ao povo todas as palavras do Senhor, e todos os estatutos; então o povo respondeu a uma voz, e disse: Todas as palavras, que o Senhor tem falado, faremos.

Moisés escreveu todas as palavras do Senhor, e levantou-se pela manhã de madrugada, e edificou um altar ao pé do monte, e doze monumentos, segundo as doze tribos de Israel;

E enviou alguns jovens dos filhos de Israel, os quais ofereceram holocaustos e sacrificaram ao Senhor sacrifícios pacíficos de bezerros.

E Moisés tomou a metade do sangue, e a pôs em bacias; e a outra metade do sangue espargiu sobre o altar.

E tomou o livro da aliança e o leu aos ouvidos do povo, e eles disseram: Tudo o que o Senhor tem falado faremos, e obedeceremos.

Então tomou Moisés aquele sangue, e espargiu-o sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o Senhor tem feito convosco sobre todas estas palavras.

E subiram Moisés e Arão, Nadabe e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel.

E viram o Deus de Israel, e debaixo de seus pés havia como que uma pavimentação de pedra de safira, que se parecia com o céu na sua claridade.

Porém não estendeu a sua mão sobre os escolhidos dos filhos de Israel, mas viram a Deus, e comeram e beberam.

Então disse o Senhor a Moisés: Sobe a mim ao monte, e fica lá; e dar-te-ei as tábuas de pedra e a lei, e os mandamentos que tenho escrito, para os ensinar.

E levantou-se Moisés com Josué seu servidor; e subiu Moisés ao monte de Deus.

E disse aos anciãos: Esperai-nos aqui, até que tornemos a vós; e eis que Arão e Hur ficam convosco; quem tiver algum negócio, se chegará a eles.

E, subindo Moisés ao monte, a nuvem cobriu o monte. E a glória do Senhor repousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu por seis dias; e ao sétimo dia chamou a Moisés do meio da nuvem.

E o parecer da glória do Senhor era como um fogo consumidor no cume do monte, aos olhos dos filhos de Israel. E Moisés entrou no meio da nuvem, depois que subiu ao monte; e Moisés esteve no monte quarenta dias e quarenta noites.”

Vamos fazer uma análise rápida desse texto.

Primeiro Deus manda Moisés subir ao monte com Arão, Nadabe, Abiú e setenta anciãos.

Moisés então conta ao povo sobre “as palavras e estatutos” de Deus, que o povo promete cumprir.

Só depois Moisés sobe ao monte com Arão, Nadabe, Abiú e setenta anciãos.

E de novo Deus manda Moisés subir ao monte, quando Deus irá dar “as tábuas de pedra e a lei, e os mandamentos”.

Moisés vai com Josué, mas não com os anciãos, Arão ou Hur.

Agora, o primeiro desafio da Crítica das Fontes: entender cada episódio descrito. E você, leitor, está convidado a tentar fazer isso sozinho.

Quais são as “palavras e estatutos” que o povo promete cumprir?

Por que se comenta sobre Hur e não sobre Nadabe e Abiú na posterior subida ao monte?

Moisés subiu quantas vezes ao monte? Por que não existe menção explícita de sua descida?

Essas questões fazem parecer que o capítulo seja, na verdade, uma junção de vários pequenos textos diferentes.

Tente definir alguns critérios para determinar como deve ser feita essa divisão do texto em pequenas partes. Como exemplos de critério: se Deus aparece na cena ou não, ou se é usada a palavra “estatuto”, “palavra” ou “lei”.

Digamos que você chegue a conclusão que o texto do capítulo 24 é a junção de 3 pequenos textos.

Agora é a hora de usar os critérios que determinaram quantos pequenos textos formaram o capítulo 24 para ver se eles indicam a autoria de outras partes do Pentateuco.

Você poderia dizer que o autor de certo pequeno texto sempre usa a palavra “estatuto” para se referir a “lei”. Então, será que esse autor foi responsável também pelas partes do Pentateuco em que se usa a palavra “estatuto”?

Você poderia chegar a conclusão, por exemplo, que quem escreveu a parte final desse capítulo escreveu também Gênesis 1, por causa da referência explícita de seis dias mais um.

Em resumo: o primeiro passo foi desmembrar o texto em pequenas partes. O segundo passo é juntar essas pequenas partes formando grupos coesos. Cada grupo final seria de um autor diferente.

Wellhausem e muitos outros fizeram esse trabalho com todo o Pentateuco, e eles chegaram a conclusão que os livros foram escritos por quatro autores diferentes.

Isto é, eles desmembraram cada episódio e organizaram os pequenos textos em quatro grupos coesos.

Essa Teoria das Quatro Fontes ficou conhecida como Hipótese Documentária.

Os quatro autores foram chamados de:

  1. Sacerdote (a fonte P, do alemão Priester): a fonte mais recente, e sua datação é próxima do período pós-exílico (a partir de 445 AEC), original do sul de Israel. Gênesis 1, por exemplo, é atribuído a essa fonte.
  2. Javista (a fonte J, que chama Deus de Yahweh, ou no alemão Jahwe): a mais antiga, do século X a.C., teria escrito Gênesis 2, por exemplo.
  3. Eloísta (a fonte E, que chama Deus de Elohim, em hebraico): contém relatos de diversas épocas, sendo original de Efraim, no norte do Antigo Israel.
  4. Deuteronomista (a fonte D): provém dos círculos ligados ao ensino doutrinário, contém longos discursos e princípios reguladores.

Embora a gente encontre essa teoria em muitos livros e edições bíblicas, quase ninguém acredita nela atualmente.

O grande problema é: o que é uma “fonte”? O que eles queriam dizer com “autor”?

O autor seria aquele que inventou as ideias e as histórias?

E se esses autores apenas juntaram ou escreveram histórias já conhecidas oralmente? Não faria mais sentido chamar eles de “compiladores”, nesse caso?

No começo desse artigo comentamos que ninguém sabe a autoria da maioria dos textos do Antigo Oriente Médio. Isso porque eles começaram como tradições orais, isto é, as pessoas contavam e cantavam as histórias por meio da fala.

E as pessoas que finalmente escreveram esses textos não copiaram ou transcreveram palavra por palavra aquilo que sabiam. Elas foram historiadoras, engajadas no entendimento das várias versões a que tinham acesso.

Tentar fazer o trabalho que descrevemos, de juntar pequenos textos parecidos (o trabalho da Crítica das Fontes), é extremamente subjetivo. Quem determina os critérios, e como? Poderia existir concenso sobre isso?

Em resumo: a Bíblia e muitas histórias mais antigas foram trabalhos coletivos. Mas claro, a versão final poderia ser atribuída ao último editor.

Você poderia dizer que uma só pessoa escreveu o Pentateuco (esse último editor, que não foi Moisés, mas alguém de séculos depois da saída do Egito); ou você poderia dizer que muitas pessoas escreveram, pois foi um trabalho coletivo complexo. Mas você não poderia dizer que foram quatro pessoas que escreveram.

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