A Bíblia é uma das obras literárias mais estudadas na história da humanidade. Religiosos, acadêmicos e pensadores estudaram os textos durante séculos, e de maneira geral, sempre consideraram a Bíblia como um livro sagrado, escrito pelo poder de Deus, e único.
Por incrível que pareça, foi apenas há cerca de duzentos anos que foi possível estudar a Bíblia a partir de seu contexto com profundidade. Isso porque dependemos do desenvolvimento da arqueologia para resgatar a história dos povos vizinhos aos antigos hebreus: os sumérios, hititas, elamitas, ugaritas, entre outros. E o que foi descoberto é que a Bíblia dialoga com todos esses outros povos.
Um dos materiais mais relevantes para o estudo da Bíblia em contexto são os da Mesopotâmia, que é a região entre os Rios Eufrates e Tigre.
Existem dois motivos principais para esse recorte do estudo dessa região. O primeiro é que os materiais encontrados lá são o melhores em termos de quantidade e qualidade. Qualidade porque, ao contrário do Egito e da Grécia, como exemplos, a Mesopotâmia foi habitada por muito tempo por povos semitas, que têm ancestralidade comum com os israelitas da Bíblia.
Esse nome “semita” vem de Sem, um dos filhos de Noé. Se refere também a um conjunto de línguas. Aqui vai um esquema geral sobre as línguas semíticas.
Na região ainda existia a língua suméria, que é considerada a língua mais antiga do mundo (com alguma controvérsia), mas que não gerou nenhuma outra língua. No esquema, ela estaria separada de todas e sozinha.
O segundo motivo é que os escritos dessa região foram preservados, uma vez que o material usado para fazê-los era simplesmente muito mais resistente.
Para estudar a fundo a influência mesopotâmica nos escritos bíblicos, vamos primeiro apresentar um panorama geral da história dessa região, e em outras posts iremos abordar comparações dos documentos mesopotâmicos com a Bíblia com mais profundidade.
Um panorama geral da Mesopotâmia antiga
A Mesopotâmia foi governada por muitos povos diferentes ao longo do tempo. Segue uma linha do tempo, e não leve os anos muito a sério. É impossível saber com exatidão, essas datas do mundo antigo costumam ser aproximadas mesmo.
Nessa linha, a forma que os períodos ficaram conhecidos estão acima das datas, e logo abaixo estão os nomes de alguns reis importantes. Abaixo dos nomes dos reis, estão alguns livros e documentos importantes de cada período.
Linha do tempo da Mesopotâmia antiga, indicando alguns reis abaixo das datas e documentos importantes do período abaixo dos reis.
Os textos mais antigos encontrados na região (e provavelmente no mundo) são de aproximadamente 3200 a.C., e foram escritos em sumério. São simples, e descrevem basicamente acordos “financeiros”.
Já no período de 2800 a 2350 a.C. começaram a surgir outros tipos de documentos, como inscrições reais, que basicamente glorificavam o rei, e as Instruções de Shuruppak, que fazem parte da literatura da sabedoria suméria.
Esse era o mapa do Oriente Médio até a chegada do Rei Sargon, o Grande, que fundou o Império Acadiano. Ele organizou um exército forte, e a complexidade do novo império exigiu novas responsabilidades burocráticas. Foi nesse período que foram criadas umas das primeiras unidades de peso e medida. Os anos passaram a ser reconhecidos por nomes, que eram determinados pelo palácio e usados em todo o império. Não só isso, a escrita começou a ser padronizada, dando origem à língua acadiana (que vem do nome da cidade central do império, Akkad).
Os reis acadianos se descreviam como reis “dos quatro cantos do mundo”, ou seja, como os reis do universo, e muitas vezes eram representados como deuses.
Devido a conflitos internos e externos, o Império Acadiano chegou ao fim durante o reinado de Shar-Kali-Sharri, que em acadiano significa “Rei dos Reis”.
Aproximadamente 40 anos depois do fim do Império, outro grande Império surgiu na região, o Reinado da Terceira Dinastia de Ur, ou Ur III.
O centro desse novo Reinado era a cidade de Ur. Seu fundador, o Rei Ur-Nammu, se referia como rei dos sumérios e acadianos, e a língua oficial era o sumério.
A atividade textual nesse período floresceu, e hoje já foram resgatados mais de 150.000 documentos. É desse período também um Código Penal e Civil, conhecido como a Lei de Ur-Nammu.
É dessa época a construção de grandes obras arquitetônicas, entre elas os zigurates na cidade de Ur, que hoje representam uma chave importante para entender a história da Torre de Babel na Bíblia.
No ano 2004 a.C. o Reinado de Ur foi destruído como resultado de um ataque vizinho de Elam e de tribos nômades amoritas. Essa destruição marcou o fim da cultura suméria e foi documentada em cinco grandes lamentações literárias que descrevem a catástrofe.
A partir dessa queda, até cerca de 1600 a.C., a Mesopotâmia conheceu os Períodos da Babilônia e da Assíria Antigas. Esses nomes correspondem também aos dialetos acadianos que entraram em vigor, isto é, os dialetos assírio e babilônico. O sumério foi preservado ainda na literatura da época, que guardava muitos dos documentos antigos.
Esse período foi marcado por uma descentralização do poder, e muitas cidades surgiram no mapa. Também foi uma época marcada pela entrada de muitas tribos nômades amoritas na Mesopotâmia.
Duas cidades-estado importantes são Mari, onde foram encontrados muitos documentos da época, entre eles textos de profecias, e Isin, de onde veio a Lei do Rei Lipt-Ishtar.
A Babilônia era governada por uma dinastia amorita, e tinha conflitos com muitas outras cidades. O rei que deu fim a esses conflitos foi Hammurabi, responsável pelas famosas Leis de Hammurabi, muito importantes para entender as leis expostas na Bíblia.
Com a morte do Rei Hammurabi, a Babilônia entrou em declínio, até sua derrota final pelo Rei hitita Mursili I em 1595 a.C.
Os hititas, apesar de vencerem a guerra, não ocuparam a Babilônia. Apenas deixaram a região em um estado de caos. O vácuo de poder deu lugar aos kassitas ao sul da Mesopotâmia. Não se sabe muito sobre eles, mas ao que tudo indica, sua cultura passou a ser bastante integrada com a cultura babilônica. A capital do Império Kassita era a Babilônia.
Durante esse tempo, a escrita e reprodução de textos sumérios parou totalmente. Os textos acadianos, por sua vez, foram largamente copiados, e foram escritos novos trabalhos literários.
Um texto importante é o ‘Ludlul bēl nēmeqi’, que em acadiano significa “Eu irei louvar o senhor da sabedoria”, e é sobre um homem justo que no meio de grande sofrimento questiona o julgamento de deus. Ele é considerado um paralelo ao livro de Jó.
Ao norte dos kassitas, estava o Reinado da Assíria. Sua capital era Assur, e são dessa época as Leis Assírias e os Anais Assírios, em que se descreviam todos os feitos do rei anualmente.
A partir de cerca de 900 a.C., a região mesopotâmica foi governada pela Assíria. A Bíblia relata investidas a Israel, entre elas a do Rei Senaqueribe (705-681 a.C.) contra Judá (2 Reis 19).
A glória da Assíria, porém, teve um fim junto com o fim do Rei Assurbanípal (algum momento entre 639 e 620 a.C.). O processo de decadência desse reinado não é muito bem conhecido, mas sabe-se que já por volta de 605 a.C. a Mesopotâmia era governada pelo reinado babilônico.
Os documentos históricos da Babilônia de 626~539 a.C. são mais escassos do que os do reinado assírio anterior. Hoje se conhecem mais documentos sobre as construções do que do que sobre as investidas militares da época.
Um rei importante foi Nabucodonosor II, que venceu a Batalha de Carquemis em 605 a.C., e restaurou os templos, zigurates e palácios reais antigos. Ele também foi o rei conhecido na Bíblia por destruir Judá e Jerusalém (2 Reis 24:12-16, 2 Reis 25). O filho de Nabucodonosor II também aparece na Bíblia, é o rei Evil-Merodaque (2 Reis 25:27).
O último rei babilônico foi Nabonido, que foi derrotado em 539 a.C. pelo rei persa Ciro II. A cultura persa já não é mais considerada mesopotâmica, e então vamos encerrar o estudo dessa série até esse último momento do reinado babilônico.
Conclusão
Esse foi um panorama bastante geral de parte da história da Mesopotâmia. Ele irá nos ajudar a nos localizar no tempo quando discutirmos possíveis comparações entre a Bíblia e outros livros antigos. Não perca!
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