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E se eu te disser que a história da Criação de Gênesis 1 não era a mais aceita de seu tempo? Igual nós debatemos a validade dela, as pessoas também debatiam há milhares de anos atrás…

Só que hoje em dia nós debatemos a Evolução x Criação, enquanto antigamente discutia-se (entre outras histórias) o Enuma Elish x Criação.

O Enuma Elish é um poema que foi encontrado no Iraque em 1849, e é do século XII antes de Cristo. Ou seja, é um poema de 2.650 anos atrás, e pertencia à biblioteca do Rei Assurbanípal II (669-626 a.C.) – comentamos sobre ele no artigo com o resumo da história da Mesopotâmia.

Mas essa versão encontrada é apenas uma cópia de uma história que deve ser ainda mais antiga. Provavelmente, é uma versão assíria inspirada em histórias sumérias de mais de cinco mil anos atrás.

Esse poema foi escrito em acadiano e hoje já temos a tradução em português – você pode comprar o e-book na Amazon aqui (é de graça no Kindle Unlimited).

Existem muitas semelhanças entre o Enuma Elish e Gênesis 1. E alguns diriam que o mais importante é que existem diferenças. Isso porque a chave para a compreensão da versão bíblica pode estar em entender exatamente qual era a diferença entre o Deus dos hebreus e os demais deuses da época.

Nesse artigo iremos comparar os textos e ver que, apesar de Gênesis 1 ser a “versão oficial” sobre o Início do Mundo, alguns autores bíblicos acabaram importando ideias do seu tempo, o que resultou em algumas discrepâncias internas na Bíblia…você pode já ter notado elas ou não, mas te garanto que nunca mais irá ler da mesma maneira.

A História do Enuma Elish

O nome desse poema vem das primeiras palavras dos primeiros versos:

Enuma Elish la nabu shamamu

Shaplitu ammatum shuma la zakrat

Parece feitiço de bruxaria de um filme da Disney… Uma possível tradução é:

Quando no alto o céu não havia sido nomeado

e a firme terra abaixo ainda não recebera um nome.

Curiosamente, os nomes dos livros hebraicos também eram dados pelas primeiras palavras. Você sabia que Êxodo não se chama Êxodo realmente?

Quando fizeram a tradução da Bíblia Hebraica para o grego (que ficou conhecida como Septuaginta), deram os nomes dos livros com base em seu conteúdo, mas originalmente, os nomes eram dados pelas primeiras palavras. Então Êxodo (que significa “Emigração/Saída”) seria na verdade Shemot, ou “E estes são os nomes”, porque é com essas palavras que o livro começa.

Mas voltando para o poema, ele descreve uma luta épica entre Tiamat (personificação divina das águas do oceano) e Marduk (o maior deus da Babilônia). E tudo começa com as águas primordiais…

Quando no alto o céu não havia sido nomeado

e a firme terra abaixo ainda não recebera um nome,

havia somente Apsu, o primeiro, aquele que tudo gerou,

e Mummu Tiamat, aquela que a tudo pariu.

Suas águas misturadas formavam um só corpo.

Não havia juncos trançados, nem lodaçais,

pois nenhum dos deuses havia sido gerado

e nenhum deles tinha nome ou destino a cumprir.”

Ou seja, antes de tudo, existia Apsu, que era a personaficação divina das águas doces, e Tiamat, que era a personificação divina das águas salgadas.

Gênesis 1 apresenta uma ideia similar:

A terra era sem forma e vazia,

havia trevas sobre a face do abismo,

e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.

Gênesis 1:2

Ou seja, ambas as histórias começam com águas, sendo que Gênesis ainda descreve um vazio escuro e um vento que é representado pelo Espírito.

Pode parecer estranho para nós, porque nós vemos as águas como “alguma coisa”, ou seja, não é de forma alguma um “nada”. Porém, ao que tudo indica, para os antigos, dizer que só havia água era o mesmo que dizer que não havia nada (além de potencial para surgir alguma coisa).

E não vou entrar em detalhes, mas acredita-se que o nome Tiamat em acadiano gerou a mesma palavra hebraica para essas águas de Gênesis 1:2, Tehom.

O poema Enuma Elish, depois dessa apresentação, então nos conta que Apsu e Tiamat se relacionam e geram deuses bebês. Porém, eles são bastante chatos e barulhentos e perturbam a paz dos pais.

“Os jovens deuses, porém, a todos incomodavam

com gritos e tumultos que agitavam, inquietavam,

e faziam tremer as profundezas de Tiamat.

Apsu insistia para que os filhos silenciassem,

mas não conseguia fazer com que o ouvissem.

Enquanto isso, Tiamat permanecia angustiada.

Apsu se adiantou e disse à resplandecente Tiamat:

“O comportamento deles é realmente insuportável.

De dia não tenho repouso e à noite não posso dormir.

Meu desejo é destruí-los e acabar com tudo isso.

Só assim teremos de volta nossa tranquilidade

e poderemos, enfim, voltar a dormir em paz.”

E assim Apsu entra em uma briga com os filhos e infelizmente acaba perdendo, sendo morto por Ea.

Porém, a briga não acaba aí. Um dos netos de Apsu e Tiamat perturba a paz de Tiamat: esse jovem se chama Marduk, o herói de todos os deuses.

Tiamat decide brigar sozinha contra Marduk, e perde a briga. Seu corpo é dividido em dois e é usado para criar o mundo.

Ao contemplar o imenso corpo sem vida de Tiamat,

Marduk teve a idéia de rasgar ao meio a sua carne,

dividindo-a em duas partes, como a um peixe.

Metade dela foi estendida no alto, formando o manto do céu,

e a outra metade do corpo da deusa, empurrada para baixo,

foi assentada como uma barragem para as águas.

Depois de colocar guardas em cada quadrante,

para que jamais suas águas pudessem escapar,

Marduk cruzou o céu e contemplou cada região.”

Como o corpo de Tiamat não era nada além de água, Marduk separa as águas que ficavam no alto do céu, das águas que ficavam embaixo na terra. Essa ideia é bastante semelhante a apresentada em Gênesis 1:

E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.

E fez Deus a expansão, e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão; e assim foi.

E chamou Deus à expansão Céus, e foi a tarde e a manhã, o dia segundo.

E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi.

E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom.

Gênesis 1:6-10

E similar a história Bíblica, Marduk vai criar os luminares dos céus e definir seu papel na passagem do tempo.

Marduk definiu os lugares que os deuses ocupariam no céu,

fixando suas imagens nas formas das constelações.

Mediu o ano e ordenou suas partes, dando-lhe começo e fim.

Para cada um dos doze meses assinalou três estrelas fixas

e depois de marcar os limites do ano pelas estrelas celestes,

definiu o lugar de Nebiru, estabelecendo seus limites

para que ninguém pudesse se enganar ou se perder.”

Em Gênesis lemos:

E disse Deus: Haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos.

E sejam para luminares na expansão dos céus, para iluminar a terra; e assim foi.”

Gênesis 1:14-15

Muito convenientemente, Marduk no final de tudo é coroado Rei do Mundo perante os demais deuses e comete um último ato de criação: surge o homem. Nessa história, como em Gênesis, a criação da humanidade aparece como um tipo de clímax.

Para encerrar a apresentação do Enuma Elish e explicar melhor as semelhanças e diferenças com o texto bíblico, vou colocar aqui uma “foto” do Grande Rei Marduk:

Estátua de Marduk em um selo cilíndrico do século IX antes de Cristo.

Aqui vemos que ele está em cima de águas, que são Tiamat, e vemos que elas já estão separadas em duas (tem uma linha no meio delas). Também vemos um tipo de cobra, um monstro marinho, e vou falar sobre ele no final.

Semelhanças entre Enuma Elish e Gênesis 1

Nós já vimos algumas semelhanças entre os textos – mesmo que sejam histórias diferentes e que não têm paralelo direto entre si. Elas são:

  • No início da Criação, existia (quase) apenas água
  • Os nomes para essa água em hebraico (tehom) e acadiano (tiamat) tem provavelmente a mesma origem (de uma terceira palavra)
  • Um dos primeiros atos de criação é a divisão de águas acima e abaixo na terra
  • Depois, os luminares são criados para que fosse feita a divisão do tempo
  • O último ato de criação é o do homem, em um tipo de clímax para a história

Na Antiguidade, existem muitas histórias com um deus herói que vence as águas para criar o mundo.

De maneira geral, não podemos dizer que o autor de Gênesis 1 se baseou completamente no Enuma Elish para escrever a História da Criação. Mas existem paralelos de temas gerais que aparecem de forma muito comum nessas histórias antigas, como os citados aqui.

Diferenças entre Enuma Elish e Gênesis 1

As diferenças entre os textos são muito maiores e mais gritantes do que as semelhanças.

Um acadêmico muito importante que defende a ideia de comparar textos bíblicos e não-bíblicos como ferramenta se chama Umberto Cassuto.

No comentário de Gênesis 1-11, ele diz que o propósito de Gênesis 1 é mostrar que o mundo foi criado por um Deus Único, e sem batalhas – o que nega praticamente todos os demais mitos mesopotâmicos.

No Enuma Elish, os deuses podem se juntar e ter filhos, lutar e morrer, e fazem parte do mundo natural. Alguns deuses são maiores do que outros, e podem ser identificados com elementos mundanos, como os mares.

Diferente do Deus da Bíblia, que não tem genealogia e está acima de toda a natureza. Esse Deus não tem nenhum rival, e mais do que isso, é único.

Na separação de águas, Gênesis considera que elas sejam inanimadas, e não apresentam nenhuma resistência ao que está sendo feito com elas.

Talvez essas diferenças sejam a chave para compreendermos realmente o que o texto bíblico queria dizer.

O monstro marinho

Algumas traduções da Bíblia são mais fiéis ao texto original do que outras (mas todas tem execelentes motivos para a escolha de palavras – eu confio em absolutamente todas).

Uma Bíblia que se propõe a ser o mais fiel possível ao original é a Bíblia de Jerusalém. Nela está escrito:

Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie, e as aves aladas segundo a sua espécie, e Deus viu que isso era bom.

Gênesis 1:21

Na sua Bíblia, como na minha, você pode encontrar a palavra “baleia” no lugar de “serpentes do mar”. Ou alguma variação disso, como os “grandes animais dos mares”, e por aí vai.

No original, a palavra aqui é “tannînîm” (plural de “tannîn”) e se refere a um réptil perigoso, muitas vezes considerado uma grande cobra. A pergunta é: por que esse animal merece uma menção especial durante a criação? Todos os outros são genéricos, são pássaros, animais rastejantes, árvores, etc.

No Enuma Elish não existe a menção direta a “tannînîm”, mas em outros textos da Antiguidade ele é um animal bastante conhecido, que aparece em batalhas divinas. Mesmo no Enuma Elish, Tiamat enfrenta Marduk com a ajuda de um exército de animais marinhos míticos (daí na “foto” de Marduk que eu coloquei lá em cima ele aparecer ao lado de uma espécie de cobra, que foi domada).

Umberto Cassuto comenta que essa figura aquática mitológica aparece em Gênesis 1 como uma forma de protesto contra as demais histórias antigas. Para o Deus dos hebreus, “tannîn” é só mais uma criatura no meio de todas as outras, e não é temida.

Outros Mitos de Criação na Bíblia

Gênesis 1 é bastante consistente em apresentar um Deus diferente dos outros que existiam.

Porém, em algumas passagens bíblicas podemos ver que os autores estavam realmente imersos em uma cultura diferente daquela pregada na Torah, como nessa passagem de Isaías:

Desperta, desperta! Mune-te de força, ó braço do Senhor! Desperta como nos dias antigos, nas gerações de outrora. Por acaso não és tu aquele que despedaçou Raab, que trespassou o dragão (“tannîn”)?

Isaías 51:9

Aqui, o profeta cita uma batalha antiga entre Deus e dois outros, Raab e um monstro, que é “tannîn”. Não ficamos sabendo mais nada sobre isso, mas provavelmente o autor se refere a outros mitos de seu tempo, que incluíam a luta divina com esse monstro marinho.

Isso acontece em outras passagens também:

“Tu porém, ó Deus, és meu rei desde a origem, quem opera libertações pela terra; tu dividiste o mar com o teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas “tannînîm”; tu esmagaste as cabeças do Leviatã, dando-o como alimento às feras selvagens”

Salmos 74:13-14

Podemos ver que deveria existir um mito conhecido pelos autores da Bíblia, que dizia que Deus, na criação, venceu os monstros dos mares, Raab e Leviatã, em outras palavras, rivais. Esse mito é muito mais parecido com Enuma Elish e outros mitos da época, e diferente de Gênesis 1, que não apresenta nenhum tipo de batalha, nem rivais.

Conclusão

Se compararmos o Enuma Elish com Gênesis 1 vamos ver que não podemos dizer que os autores da Bíblia se basearam completamente nele.

O Deus da Bíblia não tem rivais a sua altura, não tem genealogia e não cria nada por meio de esforço. Pelo contrário, a linguagem usada em Gênesis 1 é passiva, como se Deus estivesse quase desenhando algo que com certeza surgiria simplesmente porque ele disse que surgiria.

Porém, podemos ver alguns temas em comum, como as águas primordiais, que aparecem no início de tudo – o que faz bastante sentido, pensando que o nosso encanamento e saneamento básico eram inexistentes na época, e eles viam a importância da água no seu dia a dia. A água realmente representa potencial de vida.

Também vemos a preocupação da Criação de luminares no Céu para a passagem do tempo, e o surgimento do homem como um tipo de clímax para as histórias.

Além disso, vimos que algumas passagens da Bíblia comentam sobre uma luta entre Deus e um monstro marinho, que em Gênesis 1 aparece como um animal qualquer no meio da Criação.

Muito provavelmente, os autores da Bíblia conheciam outros mitos da Criação que falavam em lutas divinas, e isso aparece em um lugar ou outro na Bíblia, mesmo que Gênesis 1 não fale nada sobre isso.

Mas e você, o que achou dessa comparação? Você acha que ela faz mais sentido do que a discussão entre Gênesis 1 e a Teoria da Evolução?

Comenta aqui embaixo, adoramos ouvir vocês!

2 thoughts on “[Parte 2] A Bíblia e a Mesopotâmia antiga: Enuma Elish

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